A Bíblia que todos temos numa prateleira

 



O livro deste mês é um daqueles achados que dificilmente nos chega às mãos, por ser de um autor pouco traduzido para o português, para nós quase desconhecido. Temos a sorte de, de vez em quando, sermos inspiradas pelo guru literário de uma das fundadoras deste grupo de leitura, que desencanta estas pérolas, sabe-se lá de onde. Não é uma obra extensa, ou maçuda, mas exige à partida algum trabalho de casa, para ser completamente compreendida. Ou isso, ou um grande conhecimento histórico político da Europa, porque só nos fará sentido a personagem se a conseguirmos contextualizar. O autor  Péter Nádas, apresenta-nos um rapaz, que nos parece a entrar na puberdade, húngaro, que vive nos anos 50 com a família: pai, mãe, avó e avô. Começa a história com um acontecimento brutal, que nos deixa ligeiramente apreensivas quanto à saúde mental do garoto, e continua com um desencadear de factos que nos são particularmente incómodos e estranhos. Gyurika é cruel, impulsivo, vingativo, medroso, curioso, moralmente questionável, e tudo o que um rapaz pode ser, no seu processo de crescimento, que neste caso acontece dentro de um regime comunista, numa casa de pessoas ligadas ao partido, que não parecem ter tempo para educar, todos emocionalmente distantes da infância e das suas particularidades. Ele mata o cão da família, num acesso de fúria e vingança, depois de ser mordido, e ninguém percebe a necessidade de haver um castigo, um julgamento, um apuramento dos factos sobre o que aconteceu, sobre as suas ações, deixando-o órfão de consequências. No seu dia a dia solitário, Gyurika vive e convive, apenas recorrendo às poucas linhas de orientação moral que vai aprendendo no seio familiar, nos momentos rápidos de refeições à mesa, e quando surge uma empregada na casa, a sua capacidade de relacionamento demonstra as suas fragilidades. Numa tentativa de entender o certo e o errado, Gyurika procura numa Bíblia antiga, que nunca serviu propósitos espirituais na família, pelos 10 Mandamentos, mas a sua ignorância teológica levam-no a uma ainda maior frustração infantil. Procurar num livro de milhares de folhas finas e letra miudinha, de linguagem simbólica, por uma resposta clara e pragmática que oriente o seu comportamento é uma tarefa impossível para o personagem, e convenhamos, até para todos nós, que temos uma Bíblia numa prateleira da sala. 


A nossa sugestão de leitura para o próximo mês é o mais recente livro do nosso já muito apreciado Valter Hugo Mãe:





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