Nada é mais urgente que uma bexiga a rebentar



A escolha do livro para leitura em Novembro, "Sete anos bons", foi intencionalmente feita pela atualidade dos acontecimentos no Médio Oriente, nomeadamente o conflito entre a Palestina e Israel. O autor israelita Etgar Keret, contemporâneo e nascido e criado em Israel, mostrou-nos um pouco da sua realidade enquanto judeu moderado, pai e marido, escritor de profissão, que utiliza os primeiros sete anos da vida do seu filho para nos contextualizar a sua vida, a visão que tem do seu mundo, que nos parece fechado numa redoma muito própria, uma realidade quase distópica para nós, que só vemos as guerras pela televisão e vivemos uma religião pagã, não perdemos muito tempo a pensar nas questões bíblicas profundas. Quando Etgar escreveu este livro não tinha ainda sido declarada guerra de Israel contra o Hamas, mas havia mísseis esporádicos que param o dia a dia da população em Telavive, que cancelam aulas, que obrigam todos a fechar-se como os ouriços enquanto o som de estrondo não passa, para depois, voltarem naturalmente às atividades momentaneamente suspensas. Uma realidade que ninguém estranha, e que é explicada às crianças nos seus primeiros anos de vida, porque o ser-se judeu ali é aceitar que foi, é e será sempre assim. Como se não houvesse outra forma de estar, sem ser em alerta. O que surpreende no livro é a resiliência humana do autor, a sua capacidade mental de conseguir escapar ao extremismo religioso, ao ódio, à vingança, de se aprofundar mais nos seus problemas domésticos do que num esgotante procurar de culpados do outro lado da barricada. Qualquer um de nós, aqui de longe, consegue perceber o terror que será viver num local sem paz ou fronteiras historicamente definidas, o desassossego que será trazer um filho ao mundo e ter que decidir um dia se o manda para o exército ou não, porque ir é traçar-lhe uma cruz, não ir é traçar a cruz nos filhos dos outros, enquanto escondemos o nosso. Pouco mais que isto seria o suficiente para enlouquecermos, porque felizmente vivemos dilemas bem mais simples em Portugal, não temos a carapaça necessária para brincarmos à sanduíche com um filho, deitados no chão da rua, mãe, filho, pai, os três sobrepostos enquanto passa o míssil e o perigo, depois levantar, sacudir a roupa e continuar. Etgar vive assim com a mulher o e filho, cresceu assim, mas ainda se consegue preocupar com o taxista que o levou a casa e estava aflito para usar a casa de banho. Deixou-o entrar em casa e aliviar-se, perante o olhar chocado da mulher, porque para ele não é humano ignorar um outro homem em sofrimento físico porque a bexiga vai rebentar e ele passa o dia a conduzir, sem local próprio para o seu xixi. 


Durante o mês de Dezembro vamos ler "A Bíblia", de Peter Nádas. 



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