O Acontecimento de se ser Mulher

 


O nosso pequeno grupo informal de leitura foi desafiado pela Vereadora da Cultura da CML, a Drª Henriqueta Oliveira, para realizar uma Tertúlia extra dedicada a Annie Ernaux, a vencedora do prémio Nobel de Literatura em 2022. Uma responsabilidade para quem nunca tinha lido nada da autora, mas que aceitámos, em troca de um chá, que se revelou num belo e recheado lanche de fim de dia, um pouco à semelhança da escritora, que nos era desconhecida, mas nos surpreendeu pela enorme e complexa vida de uma mulher amplamente premiada pelas suas obras e com uma história de vida marcada pela superação, crescimento, dedicação à causa do feminismo e igualdade de género. Para a maioria de nós, hoje dia, estes são chavões banais no discurso atual, e não nos causa qualquer estranheza as mulheres exigirem mais, reclamarem direitos, lutarem pelo que acreditam, mas para Annie Ernaux, nascida no pós-guerra, numa família humilde, a primeira no seu contexto familiar a frequentar o ensino superior, a viver a idade de jovem adulta nos finais dos anos 60 em França, o mundo era diferente. Annie mostra no livro "O Acontecimento", a obra escolhida para a leitura de ontem, a condição feminina de uma classe, de um género, a desigualdade na liberdade sexual, os sofrimentos comuns e particulares de uma jovem estudante universitária que se vê grávida e decide abortar. Desengane-se quem pensar que lerá um romance cuidado e embelezado, ou eufemismoS suavizantes. A autora conta na primeira pessoa, de forma autobiográfica, e extremamente crua, o que viveu quando engravidou e estava longe da família, a estudar na universidade. Dá novamente vida ao "Acontecimento", ao momento em que decide que não pode ter um filho naquela idade e condição, quer abortar, mas não há interrupção voluntária de gravidez legalizada. Vê-se sozinha, amedrontada, frágil, pobre, mas decidida, e conta-nos, com recurso a uma velha agenda onde registava os acontecimentos do dia a dia, o que viveu. Há nela essa necessidade, o de fazer valer o seu direito de ser, de escrever a sua verdade, de mostrar que os romances podem ser uma arma, que ela utiliza para o bem comum da luta feminina. Quando acabamos de ler este pequeno livro, ficamos durante um tempo angustiadas, mas inexplicavelmente aliviadas porque alguém o disse, alguém contou que pagou para uma "fazedora de anjos" para se livrar de uma gravidez que não era desejada, dando voz e fazendo uma ponte de empatia com milhares e milhões de mulheres que passam pela mesma situação. Haverá algo mais importante que o amor pelo próximo que sofre? Este livro dá a mão a muitas mulheres, e só por isso, para nós, já venceu o Nobel da Humanização da condição da mulher enquanto ser portador da capacidade de reprodução. Uma responsabilidade que todas carregamos, com que temos de lidar, a partir da puberdade, e que nos marca profundamente durante a nossa existência. Annie Ernaux pegou nessa sua condição feminina e fez dela um exemplo, relatando neste "Acontecimento" tudo o que há para saber sobre um tema tão transversal no mundo e na história de vida das mulheres. Para nós, portuguesas a viver numa época diferente e com alguns avanços significativos na área da saúde reprodutiva das mulheres, algumas situações do livro são absurdas e inaceitáveis, mas de tal forma humanamente banais, que não podemos senão agradecer a coragem da autora. Porque a verdade é um direito, mesmo a mais escabrosa. 

                                                            

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