Os rapazes de Nickel
O livro proposto para Outubro prometia ser daqueles que ficam na nossa memória. O tema é sempre atual, contemporâneo, importante de debater, a maldade humana, o racismo, a violência, as infâncias partidas que dão origem a adultos com cicatrizes, ou irremediavelmente estragados. Conta a história de um rapaz, negro, nos anos 60, a viver na América do Norte, que nasce já com o destino previsto, e que o cumpre. O azar leva-o ao reformatório para rapazes, e lá, é escrito o último parágrafo da sua vida. Os horrores que são contados só não nos deixam doentes, porque o autor não os explorou, como se calhar devia. Não que sejamos sádicos, nada disso, apenas fica por cumprir o choque que leva a reflexões profundas, absolutamente necessárias nos dias hoje. A linguagem podia ser mais crua, mais pesada, já que na realidade há uma visão adulta e académica da situação, talvez resultado da formação do autor, e quando lemos um romance, queremos veracidade pelo menos na essência dos personagens, senão fica irreal. E fala-se no livro de uma situação imaginada, mas baseada em factos e um local específico que existiu, onde foram descobertos cadáveres de antigos alunos, com sinais de abusos e violência, que iniciaram uma investigação ao que durante décadas, sim, décadas, aconteceu num reformatório onde iam parar todo o tipo de crianças. Órfãos, desamparados, condenados de pequenos crimes, que normalmente aconteciam para sobrevivência dos mesmos, mas que eram implacavelmente punidos. Rapazes que não interessavam a ninguém, sozinhos e de quem a sociedade deveria ter tomado conta. Não são coisas do passado, acontecem, ainda um pouco por todo o lado, às vezes bem perto de nós, tantas vezes à nossa frente, mas camuflados. Se o autor não estivesse tão formatado para o público moderado dos EUA, talvez este fosse um grande livro. Talvez se fosse mostrado em filme, com imagens gráficas a contar o que ele nos ocultou, muita gente entendesse que a maldade, o desinteresse e a falta de compaixão são adubo para o crime. Assim, só se refletirmos e aprofundarmos as personagens com a nossa própria imaginação e empatia é que lá chegamos.
Mas nem só de desilusões literárias se falou na tertúlia, que foi especialmente importante, por ser a estreia de uma versão presencial e virtual, com colegas a acompanhar o chá através do Zoom. Ultrapassados os problemas técnicos de som, foi interessante perceber que é preciso resistir, nestes tempos estranhos que vivemos. Resistir à facilidade com que os argumentos fatalistas nos obrigam ao isolamento, com medo do covid-19. Sim, estamos em pandemia, mas face ao sofrimento vivido no reformatório "Nickel", somos uns felizardos. Temos de ter paciência, e resistir. Não abandonar tudo o que faz de nós quem somos, neste caso, book lovers, mas que se estende para muitas outras coisas da nossa vida. Não podemos desistir de conviver, de conversar, de rir juntos. Podemos fazê-lo, sempre, seja a dois metros de distância, seja pelo ecrã de um computador.
Para Novembro propomos "A máquina de fazer espanhóis", de Valter Hugo Mãe
Boas leituras!
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