Distopias, tarte de maçã e castanhas



"A História de uma Serva" foi escrito nos anos 80, ainda numa época em que as distopias não estavam tão na moda, talvez por isso apenas agora se esteja a dar importância ao livro, a uma escala global. Apareceu uma série de TV inspirada na história, e abriu-nos a curiosidade para perceber o porquê do sucesso da mesma. Na minha opinião, não se pode gostar de uma história que nos dá cólicas e medo com um tema tão sensível como a liberdade e a individualidade, que facilmente são questionadas por uma sociedade que se encontre corrompida ou frágil. Mas a maioria das que leram o livro gostaram, não por ser um tema divertido ou alegre, mas por ser assustadoramente fácil de imaginar. A esterilização da mulher de carreira e de um certo status, que nos países desenvolvidos é cada vez mais possível, a categorização das mulheres por tarefas, que nos remete logo para sociedades pouco desenvolvidas, o facto de a escritora nos colocar numa época em que a personagem principal está subjugada como "serva" da casa onde vive, mas ainda se recorda da anterior condição livre, que é a nossa (ainda) realidade. Essa dinâmica é que nos angustia, a memória dela a lutar com o dia-a-dia que a mente tenta aceitar como normal, talvez para não enlouquecer. Acordar serva de uma casa, prisioneira, com uma missão, e nada mais. Literalmente. 
Há tanto de genuíno e familiar nesta visão exagerada que a autora inventou, que nos deixa a pensar se, enquanto mulheres, somos mais que personagens com uma tarefa a desempenhar, se temos o destino nas nossas mãos, ou apenas vivemos versões mais leves da distopia de Margaret Atwood. Onde começa e acaba a linha que nos separa da loucura generalizada em busca de uma sociedade melhor, para alguns, entenda-se, como temos visto ao longo da história mundial? Pensar nisto pode ser a solução para nunca cairmos na tentação de reduzirmos o ser humano a uma etiqueta, seja ele macho ou fêmea, de nos contentarmos com o discursos simplistas de quem deveria pensar mais e melhor. O Homem não é uma criação simples, previsível, correta e esterilizada. É um bicho complexo, com diferentes tamanhos e cores, umas vezes dança, outras canta, umas vezes tem pincéis nos dedos, outras vezes corre como uma chita. A sua beleza está nisso mesmo, em não ser como as outras espécies, em ser diferente e único. Se não soubermos o que pensa o colega do lado podemos ser tentados a temê-lo, e o medo é perigoso, e tem levado a grandes tragédias. Mas tenhamos esperança de que a nossa individualidade possa combater essa orientação ideológica do fanatismo e ditadura, que a nossa forma única seja inspiração e não medo.
Ontem à mesa fomos a prova de que a maior riqueza está no caos, onde as conversas rodopiam em ângulos e círculos, onde a mulher se sabe tão bem orientar, com as suas capacidades mágicas de comer tarte de maçã, beber chá, oferecer castanhas às amigas, devolver um frasco vazio, atender uma mãe ao telefone, opinar sobre a melhor forma de comprar um livro na internet, sugerir séries a que estamos viciadas, discutir temas filosóficos e rir de disparates que surgem sem ninguém perceber como. 

Filipa

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